Crônica enogastronômica

Publicado em 05 de fevereiro de 2013

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Em 1984, estávamos em Lisboa a caminho da Côte D’Azur: eu, minha mulher Tasia, Lulu Flor e sua mulher, Tuiza. Íamos passar dois dias em Lisboa e depois seguiríamos para França. Éramos hóspedes do Hotel Mundial (um dos mais tradicionais de Lisboa) e como já conhecíamos quase todas as tradicionais casas de fados da cidade, solicitamos, na portaria, uma sugestão.

 

De pronto, foi sugerida a Timpanas, que ficava fora de Alfama e era pouco conhecida dos brasileiros. Chegando lá, vimos que se tratava de uma casa de tradição, mas sem as badalações das outras, como O Luso, A Severa, Parreirinha de Alfama, Lisboa à Noite, Adega do Machado etc.

 
Escolhemos uma boa mesa e pedimos o vinho da casa já incluído no “pacote”. Enquanto esperávamos, passei a vista na carta de vinhos e deparei-me com o Barca Velha, o mais famoso vinho de Portugal e um dos melhores do mundo. Então, falei para Lulu: – amigo velho, vamos fazer uma extravagância tomando um Barca Velha, que vai nos custar em torno de 200 dólares a garrafa? Ele, com aquela disposição de sempre, logo confirmou, apesar do protesto das nossas mulheres.
 
Chamamos o garçom, enquanto tomávamos o razoável vinho da casa e pedimos uma garrafa do Barca Velha, para seu assombro.
 
O garçom perguntou se era isso mesmo que queríamos e se tínhamos visto o preço, etc…, com a “finesse” peculiar dos portugueses. Confirmamos tudo, e ele falou que teria que chamar o “Escanção” (Somellier), pois somente ele poderia servi-lo. Quando o “Escanção” chegou, nos fez as mesmas perguntas do garçom. Confirmamos tudo e ele nos fez esperar por uns 15  minutos pelo afamado vinho.
 
Depois desse tempo, eis que vimos um cortejo, em direção a nossa mesa, composto do Escanção à frente, com uma túnica branca e um enorme medalhão no peito e quatro garçons segurando um andor sobre o qual estava a garrafa do Barca Velha.
 
A essas alturas, Tásia já estava com vontade de sumir pelo escândalo que a gente estava fazendo por causa de uma garrafa de vinho. Enfim, chegaram a nossa mesa, todos que estavam no restaurante olhando “interrogativamente”, e o nosso desejo aumentou ainda mais para tomar o ditoso vinho.
 
Qual foi nossa surpresa, quando o Escanção nos perguntou se era esse o vinho, nos mostrou o rótulo, ano da safra etc. Ele nos disse que só poderíamos bebê-lo depois do mesmo respirar por uma hora, num nicho (que passei a chamar de oratório), que se achava encravado numa parede perto de nós, local destinado ao vinho, para que este repousasse e respirasse, afim de adquirir as qualidades ideais para ser tomado.
 
Nesse momento, para nosso espanto, aproxima-se de nós o Dr. Newton de Paula e esposa. Ele, fazendeiro muito conhecido nosso no Rio Grande do Norte, e nosso amigo. Perguntou o que era aquela celeuma toda. Quando contamos o acontecido, ele sorriu dizendo: com esse estardalhaço, esse vinho só poderia ser muito bom, e ele gostaria de tomar uma taça. Dissemos que seria um prazer, e o casal  ficou na nossa mesa.

Médico Geraldo Furtado, membro da Academia de Medicina do Rio Grande do Norte, ao lado da esposa Thasia Furtado, que o acompanhou

Enquanto esperávamos o vinho respirar, ele nos falou que ia a Israel conhecer umas vacas que davam 50 litros de leite por dia e estava, também, há dois dias em Lisboa (como a gente) para depois embarcar para Telaviv.
 
Depois de uma hora, lá vem o mesmo cortejo pegar o vinho e trazê-lo a nossa mesa. O “Escanção”pegou um copinho que trazia a tiracolo, provou o vinho e falou: “magnificativamente” soberbo. Fomos servidos e, de fato, o vinho estava sensacional! Tão maravilhoso que Lulu falou em pedir outra garrafa, para assombro das nossas mulheres e do próprio somellier. A outra garrafa passou pelo mesmo ritual e Dr. Newton ria e dizia: o vinho é muito bom, mas é mais caro que as vacas de 50 litros de leite.
 
Hoje, 29 anos depois, achamos que valeu à pena pagar os 400 dólares para guardarmos na lembrança para sempre aqueles momentos fantásticos, saboreando o Barca Velha que teve de vir de “andor” a nossa mesa e respirar num nicho para cumprir seu ritual.
 
O Dr. Newton de Paula e sua mulher já não estão mais neste mundo, mas, tenho certeza de que gravaram na memória os momentos estranhos e gostosos que passaram conosco numa casa de fados em Lisboa, em 1984.