A Festa de Babete

Gastronomia e Cinema - Rejane Souza

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A Festa de Babete, uma produção singular entre os filmes de arte, que se guarda na memória, mesmo que se assista uma única vez. Não se trata somente de uma película que se passa em 1871, envolvendo a fuga de uma fugitiva da Comuna de Paris, que busca refúgio em um pequeno vilarejo dinamarquês, onde duas irmãs Martina e Philippa a acolhem como empregada doméstica. O enredo, além da reflexão política e religiosa do período, retrata com maestria o dom que tem Babete, a fugitiva, com a arte da culinária, quebrando, com seu talento, os paradigmas do ambiente e da cultura religiosa da família dinamarquesa.

Ao chegar à pacata aldeia dinamarquesa, Babette, de origem francesa, se depara com as filhas, do então falecido pastor e mentor do lugarejo: as duas irmãs Martina e Philippa, educadas através de rígidos preceitos religiosos, que se refletem no lugar de clima morno, sem vida, onde as ações humanas vivem sob controle, a fim de que o pecado não encontre espaço. Aos poucos, os dotes culinários de Babette invadem o ambiente e, gradativamente, vai modificando a rotina das personagens e dos visitantes da casa das filhas do pastor. Centrada em seus afazeres domésticos, o único laço que une Babette ao seu país, a França, é um bilhete de loteria que uma amiga fiel todo anos se encarrega de renovar.  
 
Em conseqüência disso, ocorre o ponto alto do filme, quando Babette, finalmente, ganha na loteria francesa uma pequena fortuna. Em princípio, as irmãs ficam ansiosas, pois acreditam que o prêmio seria o passaporte desejado pela empregada para retornar ao seu país. Todavia, em nome da amizade e gratidão pela acolhida, Babette se oferece para organizar um jantar em comemoração à memória e a data de aniversário do pai das irmãs – do qual elas dedicam as suas vidas. 
 
É nesse estágio que acontece a preparação do jantar que se transforma em um verdadeiro ritual de arte e beleza. A personagem Babette planeja e executa, com evidente satisfação e prazer, todas as etapas do jantar. Os ingredientes são encomendados de seu país de origem, o que metaforiza o encontro da personagem com as suas raízes. E é, nessa parte do filme, que as imagens gastronômicas aguçam os sentidos do telespectador diante da riqueza dos detalhes da festa, da abundância e da perfeição das coisas, a preparação minuciosa dos alimentos, a fantasia do requinte e das guloseimas. 

Entretanto, tendo em vista a cultura do povo do lugar, de início, os religiosos do vilarejo, também convidados para o jantar, temem se aventurar e ferir alguma lei divina ao aceitar um jantar francês, uma vez que todos estariam diante de uma festa que instiga os prazeres terrenos e da gula. Todavia, diante de tanta paixão e arte no ato de cozinhar, o banquete de Babette se transforma em um grande objeto de desejo do qual os dinamarqueses sucumbem e se deliciam.
 
Além da dimensão gastronômica, o banquete representa, no filme, um corte nos costumes da casa e das pessoas, de tal forma que a festa cria a condição para a experiência do renascer. A busca de um novo modo de existir. Nesse contexto, o jantar realiza a mediação entre várias dimensões da arte humana, pois aquele lugarejo nunca tinha degustado, experimentado, o prazer de um jantar como aquele. Através de sua arte, Babette conseguiu que a vida daquele povo se renovasse a partir da textura dos gostos, dos paladares, libertando as pessoas de seus tabus e mitos, transformando o banquete no fazer poético.

 
A Festa de Babette
Diretor: Gabriel Axel, 1987
Atores principais: Stéphane Audran; Brigitte Federspiel; Bodil Kjer; Jarl Kulle; Jean-Philippe Lafont
Duração: 102 min